sexta-feira, 6 de junho de 2014

A carta que nunca lhe entregarei



Querido Avô,


Escrevo-lhe esta carta a muito custo. Na verdade, sei tudo o que lhe quero dizer, apenas não sei por onde começar. Talvez deva dizer-lhe o quanto gosto de si e o quanto o admiro, ainda que em certos aspetos. Sempre foi um homem lutador e cheio de garra que ultrapassou os escolhos que a vida lhe pôs à frente. Concebeu dois belos filhos, que, na verdade, se transformaram em graciosos seres humanos, não porque o senhor os criou, pois segundo o avô não foi possível, mas por tudo o que aprenderam ao longo da vida, dura e cruel com eles mesmos. Não sei como uma existência como esta pode ser tão atroz, severa e tirana com alguém. Eles caíram e, mesmo assim, não tiveram o seu apoio para se voltarem a erguer. Não sei se fez parte da educação que lhes deu, dar-lhes a lembrança de que eles estão sozinhos, de que no final somos apenas nós e não há mais ninguém à nossa volta. No fundo, acho que desde que perdeu a avó, a sua primeira mulher, perdeu toda a esperança que havia em si, toda a ponta de bondade nesse coração, só porque o sofrimento foi demasiado amargo e transbordou fora dos limites possíveis, dos quais podia aguentar. O seu orgulho magoa-me. Saber que teve todas as oportunidades e mais afins para ver os seus netos crescerem e as desperdiçou. Não adianta esse sentimento de saudade que transborda pelos seus olhos quando pensa em nós (se é que pensa). Os seus remorsos atordoam-no e vão corrompê-lo até que se digne a pedir perdão. Para quê dizer que tem tantas saudades minhas se não me procura? Dizer que sou a sua menina, a mais parecida com a avó, se o avô não quer realmente saber de mim? Eu dava tudo para o ter do meu lado. Para, talvez, conseguir construir uma relação normal e saudável entre avô e neta, que todos os meus conhecidos aparentam ter. Todos os fins de semanas, saem de casa dos avós com novas histórias, com novas aprendizagens, com novos carinhos. E eu? Não conto? Fico apenas fora do seu campo de visão, suplicando para que chegue a minha vez, para que tenha uma oportunidade para lhe dizer tudo o que sinto e tentar resolver as coisas? Só queria a nossa família unida. Todos juntos ao redor da mesa nas noites de Natal, conversando alegremente enquanto trocávamos sorrisos e risadas. Avô, eu cuido de si, de longe, mas eu cuido. E peço todos os dias, a Deus, que o ilumine e mate esse orgulho tatuado nas suas entranhas.


Da sua querida neta